Mais Valias, Loteamentos e o Regime Transitório do IRS: Revisitação da Jurisprudência

  1. Considerações iniciais

Mais valias são acréscimos no valor de elementos que compõem determinado património. Para efeitos fiscais, geralmente correspondem à diferença entre o montante recebido pela alienação de um bem (valor de realização) e o valor que o mesmo tinha quando ingressou no património do alienante (valor de aquisição). Em IRS são alternativamente tributados, seja como rendimentos passivos, que surgem de forma não provocada, não esperada e não habitual (windfall profits)[1], ou como rendimentos ativos, obtidos em resultado de uma atividade económica recorrente, prosseguida pelo seu titular, com vista à valorização desses bens[2].

Em qualquer dos casos, é perante a ocorrência de eventos de realização, que as mais valias são apuradas, com vista à determinação do imposto devido. Como o rendimento por via delas obtido depende essencialmente de dois factos tributários, ocorridos em momentos cronologicamente sucessivos, enquanto esse evento de realização não ocorrer, os contribuintes terão, quando muito, mais-valias latentes. Mais valias latentes que não são mais do que as expectativas que os contribuintes podem legitimamente formar quanto ao montante que podem em cada momento obter com a venda dos seus bens. E por isso, o tema das mais valias está também intimamente associado à previsão que os contribuintes devem poder fazer quanto aos impostos resultantes dessa realização.

Assim, qualquer alteração legislativa relativa ao cálculo das mais valias gera uma retroatividade própria, pois altera o valor dos bens que compõem o património particular, alterando as regras a meio do jogo. E com elas, as expectativas que começaram a ser formadas muitos anos antes, pelo menos desde a data da aquisição desses bens[3].

Este texto revisita a jurisprudência relativa ao regime transitório da categoria G, aprovado com vista a minimizar o impacto que a aprovação do código do IRS tem sobre os ativos detidos pelos contribuintes à data da sua entrada em vigor. A análise feita parte de uma amostra de quarenta acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Administrativo e os Tribunais Centrais Administrativos, entre 2006 e 2024, focando-se nas problemáticas suscitadas por aquele regime transitório, que assenta essencialmente numa distinção entre mais valias ativas ou passivas, com óbvias consequências sobre a qualificação dos rendimentos daí resultantes.

A análise parte de uma breve descrição do regime transitório da categoria G, passando à análise da jurisprudência mapeada, analisando o seu sentido geral, as situações de fronteira resolvidas, incluindo depois uma análise das decisões que escapam à tendência geralmente adotada por aqueles tribunais. Conclui apontando as principais implicações da qualificação dos rendimentos como ganhos da categoria B, suscitando-se o novo problema nesta sede suscitado pela alteração introduzida pelo Orçamento de Estado para 2021, da absorção da tributação segundo as regras da categoria B, alteração que ao aparentemente elimina tout cour qualquer acesso ao regime transitório em caso de afetação de imóveis a atividade empresarial e profissional do seu titular. O texto termina com um sumário das principais conclusões.

 

  1. O regime transitório da categoria G

Ora, com a entrada em vigor do código do IRS[4], o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares introduziu uma abordagem analítica à tributação do rendimento[5], passando a tratar as mais valias de uma forma muito mais ampla e metódica que anteriormente. Por isso, veio acompanhada de um regime transitório que permitisse que o efeito das novas regras afetasse o mínimo possível o valor dos bens detidos à data da sua entrada em vigor[6].

De acordo com este regime, os ganhos que (i) não eram sujeitos ao imposto de mais-valias[7], bem como os (ii) derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afetos ao exercício de uma atividade agrícola ou (iii) da sua afetação a uma atividade comercial ou industrial, exercida pelo respetivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efetuada depois da entrada em vigor do código do IRS[8].

Para percebermos a evolução da jurisprudência relativa à aplicação do regime transitório da categoria G, segue-se a análise jurisprudência em que se procurará apurar o sentido e a evolução das decisões relativas a imóveis adquiridos antes da entrada em vigor do código do IRS, que após essa data tenham adquirido a natureza de terrenos para construção. E de entre estas, o sentido das decisões em que essa natureza decorreu da aprovação de operações de loteamento promovidas pelos seus proprietários ou por terceiros.

  1. Análise de jurisprudência I: sentido geral

O regime transitório da categoria G sempre gerou questões que ao longo das últimas décadas foram merecendo a atenção dos nossos tribunais superiores. Aqui, cedo se consolidou a jurisprudência firme e reiterada no sentido de que não são tributados em sede de IRS, os ganhos obtidos com a transmissão onerosa de prédio adquirido como rústico antes da entrada em vigor do Código do IRS, que ainda conservava essa natureza aquando do início da sua vigência (1 de janeiro de 1989), mesmo que posteriormente a essa data venha a adquirir a natureza de terreno para construção, e seja alienado enquanto tal[9].

Acontece que, apesar das questões de aplicação do regime transitório serem colocadas em situações em que é pressuposto logo à partida estar-se perante rendimentos da categoria G[10], ela sempre envolveu uma certa medida de discussão sobre a possível qualificação dos rendimentos obtidos com a venda dos imóveis em causa como rendimentos da categoria B. Nessa medida, nunca esteve longe da discussão o tema da sujeição afinal dos ganhos obtidos, às regras aplicáveis a esses rendimentos, a começar pela regra da aplicabilidade imediata nesses casos, do regime da categoria B a tais situações jurídicas, incluindo as iniciadas antes da sua entrada em vigor[11].

Assim, e não obstante algumas flutuações de que se dará nota, tem sido comum os nossos tribunais superiores considerarem que as múltiplas operações necessárias à transformação de um prédio rústico em lotes de terreno para construção urbana, realizadas no decurso de vários anos para posterior venda – e ainda que exercidas em conjunto com outros interessados – conduzam a valorizações que nunca se poderão considerar ocasionais, ou fruto do acaso ou da sorte[12].

Desse modo, tem-se entendido[13] que o lucro resultante desse conjunto de atos não pode ser considerado uma valorização passiva, resultante de circunstâncias exteriores, mas antes como o resultado do exercício de atividades comerciais ou industriais desempenhadas pelos seus titulares, e ainda estes não exerçam habitualmente essa atividade[14]. Por essa razão, entende-se que essas situações devem ser qualificadas, não como incrementos patrimoniais, mas antes como rendimentos do trabalho independente, ainda que resultantes de um único ato isolado[15], sendo tributadas de acordo com as regras de apuramento previstas para os rendimentos da categoria B[16].

E como atrás se referiu, a qualificação dos ganhos em causa como rendimentos da Categoria B inviabiliza a aplicação do regime transitório previsto no artigo 5º, nº. 1 do Decreto-Lei n.º 422-A/88, de 30 de novembro, claramente disposto e pensado para os ganhos de mais valias imobiliárias de natureza passiva, e por isso qualificados como incrementos patrimoniais e tributadas de acordo com as regras aplicáveis a esse tipo de rendimentos (categoria G)[17].

  1. Análise de jurisprudência II: situações de fronteira

Associadas a estes casos estão essencialmente duas situações de fronteira, pois lidam com questões sucedâneas à jurisprudência descrita. Prendem-se primeiro, com a aprovação ou pedido de loteamento apresentado antes da venda, mas essencialmente alheio ao vendedor, porque promovido exclusivamente pelo promitente comprador dos imóveis. E prendem-se também com situações em que o proprietário, previamente à venda, procurou obter parecer sobre a viabilidade construtiva no imóvel que tem em vista vender.

No primeiro conjunto de situações, em que os proprietários dos imóveis limitam-se a autorizar terceiros interessados na sua compra a promover operações de loteamento junto das entidades competentes, realizando os atos necessários para a sua concretização, têm os tribunais pacificamente entendido os ganhos resultantes como ganhos inesperados ou fortuitos, e assim classificados como rendimentos da categoria G[18]. E quando os proprietários, igualmente antes da venda, apresentam pedidos de informação prévia, solicitando aos municípios pareceres sobre as potencialidades de construção urbana nos seus imóveis, a jurisprudência tem uniformemente entendido que esse fato não impede a qualificação dos ganhos obtidos com a venda como rendimentos da categoria G.

Pelo que em ambos os casos, não ocorrendo outras circunstâncias relevantes, e verificando-se as condições previstas no artigo 5º nº. 1 do Decreto-Lei n.º 422-A/88, de 30 de novembro[19], será o mesmo aplicável, ficando os ganhos obtidos fora do campo de incidência da norma.

  1. Análise de jurisprudência III: decisões divergentes

Porém, da análise feita à amostra analisada resultou ainda que ao longo dos anos foram proferidas decisões dificilmente enquadráveis na jurisprudência acima descrita. Trata-se decisões cuja matéria de facto assente inclui factos que atendendo às face às decisões atrás analisadas, seria razoável esperar decisão diferente. Por ordem cronológica, essas decisões são:

  • acórdão do STA de 20-05-2015 (proc. 0149/15): neste acórdão o tribunal não valorizou a circunstância de que, em 1994 o proprietário do imóvel, juntamente com outros, ter sido requerente em processo de loteamento do prédio que veio a vender ainda como rústico, em 2004;
  • acórdão do TCAN de 07-12-2017 (proc. 01456/08.9BEPRT): neste acórdão o tribunal não valorizou a circunstância, constante da matéria de facto, de que a proprietária procedeu à demolição de edifício de dois pisos existente no prédio adquirido em 1985, tendo posteriormente requerido e obtido o destacamento de área (aprovado em 2003), de que resultaram dois terrenos para construção urbana, que a impugnante vendeu em 2005;
  • acórdão do TCAS de 14-01-2020 (proc. 217/10.0BELRS): aqui o tribunal desvalorizou o facto de o proprietário ter pedido licença para a construção de um condomínio fechado em imóvel adquirido previamente a 1989, pedido que foi deferido em 2003, antes daquele imóvel ser alienado em 2004;
  • acórdão do TCAS de 05-03-2020 (proc. 936/12.6BESNT): neste acórdão o tribunal não valorizou a circunstância de o proprietário ter promovido operação de loteamento que deu origem aos terrenos para construção urbana que posteriormente alienou, aplicando-se o regime transitório quanto a parte do imóvel adquirida anteriormente a 1989;
  • acórdão do TCAS de 28-01-2021 (proc. 195/09.8BELRS): neste acórdão, o tribunal não valorizou a circunstância de o proprietário ter requerido loteamento em 1994, acabando por vender em 2004 o imóvel a sociedade, que logo em seguida averbou-se como requerente no mesmo processo de loteamento;
  • acórdão do TCAS de 15-04-2021 (proc. 1059/12.3BELRS): aqui, o tribunal desvalorizou as múltiplas diligências para a valorização do imóvel – celebração de contratos de prestação de serviços (i) de desenvolvimento de projeto imobiliário, (ii) de construção de um complexo turístico de alta qualidade, (ii) aprovação, pela Direcção-Geral de Turismo, de plano de localização de um complexo turístico, (iv) elaboração de projetos de loteamento – que acabou por ser vendido a uma sociedade por um valor elevado.
  1. Principais implicações da tributação de acordo com as regras da categoria B

O afastamento do regime transitório por efeito da aplicação a estes casos das regras da categoria B, foi recentemente retomado num impressivo acórdão do STA[20], que decidiu sobre um caso concreto em que o proprietário de prédio rústico adquirido em 1964, diligenciou: (i) pela elaboração de projeto de loteamento e de infraestruturas, (ii) pela apresentação, em 1998, desses projetos para aprovação, (iii) prometendo vender o referido imóvel a sociedade imobiliária em 1999. Da matéria de facto assente consta ainda que (iv) a partir da celebração do referido contrato-promessa, a sociedade promitente compradora passou a tratar de todos os assuntos relacionados com o processo de loteamento (sem prejuízo de o impugnante assinar pontualmente requerimentos a apresentar à Câmara competente), (v) tendo o alvará de loteamento sido emitido em setembro de 2004, (vi) e a escritura pública de compra e venda sido celebrada no mês seguinte.

Sobre a qualificação do ganho obtido pelo proprietário com a veda desse imóvel, referiu o STA ser neste momento jurisprudência firme que os rendimentos derivados da alienação de terrenos para construção, precedidos de atos conducentes ao loteamento, praticados pelo próprio vendedor, devem ser qualificados como rendimentos da Categoria B, ainda que resultantes de ato isolado[21]. Fundamenta que essa qualificação resulta da natureza ativa dos rendimentos, resultante da atividade empresarial ou comercial, desenvolvida pelo alienante na valorização e promoção desse ganho. Uma intervenção que afasta definitivamente a possibilidade da qualificação do ganho obtido com a alienação do terreno para construção como um rendimento passivo ou um “windfall gain”, que seria enquadrável na Categoria G, e decidindo que, sendo aqueles ganhos qualificados como rendimentos da categoria B, a eles não se aplica naturalmente o regime transitório disposto e pensado para a categoria G[22].

Como decorrência da qualificação desses ganhos como rendimentos da categoria B, são ainda de considerar as regras de apuramento com base na contabilidade, previstas no código do IRC[23], em especial as previstas quanto à determinação do lucro tributável. Isto implica que no seu cálculo poderão ser deduzidos todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRS, nos termos do artigo 23º do código do IRC. E sendo a atividade exercida em conjunto com outros profissionais, os encargos serão rateados em função da utilização de cada um, ou na falta de elementos que permitem o rateio, proporcionalmente aos rendimentos brutos auferidos.

Além disso, na determinação da mais-valia fiscal relativa à transmissão de bens afetos à atividade, aplicam-se as regras contidas nos artigos 46º e 48º do código do IRC, calculando-se nesses termos a mais-valia fiscal[24]. Tratando-se de pessoas singulares, e diferentemente do que sucede com as mais valias da categoria G, tributáveis em apenas 50% do seu valor, , isso significa que as mais valias qualificadas como rendimentos da categoria B, não obstante as mais amplas possibilidades de dedução de gastos, são em geral apuradas, englobadas e tributadas na sua totalidade.

  1. O novo efeito de absorção da tributação segundo as regras da categoria B

Por outro lado, em função da afetação à atividade empresarial do proprietário, de um bem que anteriormente se encontrava afeto ao seu património particular, no momento da ulterior alienação dos lotes de terreno em causa, haveria que proceder ao apuramento de dois ganhos: (i) um resultante da afetação, pelo valor de mercado à data, do imóvel à atividade empresarial e profissional do proprietário (tributado como rendimento da categoria G); (ii) e um outro, decorrente da alienação dos lotes resultantes da atividade de exploração de loteamento exercida (tributado como rendimento da categoria B). Nessa medida, e como dá testemunho o acórdão em análise, havia que determinar “em última análise, o ano em que se promoveu o licenciamento do loteamento – e, em seguida, fixar um valor de mercado para o mesmo (mais não seja, por aproximação com o valor de transacções registadas nessa data).”.[25]

Esta solução fazia sentido porque, tributando-se separadamente o ganho latente, resultante da valorização do imóvel relativo ao período antecedente à afetação à atividade de promoção ativa do mesmo, permitia-se a salvaguarda do carácter analítico do IRS, tributando como rendimento passivo (categoria G) a mais-valia resultante de fatores externos à atividade do proprietário, e como rendimento empresarial (categoria B) a parte da mais-valia imputável à sua intervenção ativa e esforço reiterado.

Acontece que, com a Lei nº. 75-B/2020 de 31 de dezembro[26], este tratamento diferenciado veio a ser eliminado. Deixaram de ser apurados separadamente como mais-valia da categoria G, os ganhos resultantes da afetação de bens imóveis pertencentes ao património particular, a atividade comercial empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário. Nesses casos, na eventualidade da ulterior alienação onerosa dos bens em causa, toda a mais-valia passa a ser tributada segundo as reras da categoria B, podendo então falar-se num efeito de absorção da totalidade do ganho passivo pelas regras aplicáveis aos rendimentos profissionais ou empresariais.

Solução que, além de mitigar o carácter analítico do IRS, tratando igualmente rendimentos de tipologias diferentes, gera nestes casos uma tripla injustiça, e suscita o absoluto cabimento da questão da constitucionalidade do artigo 364º da Lei nº. 75-B/2020 de 31 de dezembro, na parte em que alterou o artigo 10º nº. 1 al. i) do código do IRS. E o cabimento dessa questão tem cabimento, desde logo, porque:

  • em primeiro lugar, porque nos casos em apreço, em que a quase totalidade do período de detenção dos imóveis ocorreu enquanto se encontram na esfera particular dos seus proprietários, uma parte muito importante da valorização dos mesmos é de origem passiva, merecendo, por conseguinte, o tratamento especificamente previsto na lei para esse tipo de rendimentos (incrementos patrimoniais)[27];
  • depois, porque esta alteração, em termos práticos exclui do acesso ao regime transitório, os proprietários que afetem a uma atividade empresarial, imoveis adquiridos anteriormente a 1989, sujeitando-os ao efeito retroativo que o decreto-lei que aprovou o código do IRS quis expressamente evitar. Esta exclusão é tanto mais grave porque uma parte muito substancial da valorização dos atuais bens imóveis adquiridos anteriormente a 1989, que preencham as condições previstas no regime transitório, é de origem passiva e decorrente de circunstâncias externas à intervenção dos seus proprietários;
  • por fim, porque ao implicar que não beneficiem desse regime os proprietários que afetem a atividade empresarial imoveis que abstratamente preenchem as condições previstas no regime transitório, cria uma discriminação totalmente arbitrária, destes em relação aos que, não tendo procedido a essa afetação, os pretendam igualmente alienar. Uma discriminação de gravidade acrescida porque em tais casos certamente que mais de 90% do tempo de detenção desses imóveis terá decorrido enquanto integrados no património particular. E assegura que os primeiros que afetem tais imóveis a atividade empresarial sofram a mesma retroatividade que o legislador que criou o código do IRS quis evitar, e que a revisão constitucional de 1997 expressamente proibiu.

Seja como for, e não obstante o cenário atrás descrito, é possível que aquela alteração acabe por não ter o efeito descrito, já que nos termos da norma transitória que novamente se transcreve[28], “Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou da afectação destes a uma actividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código.”.

  1. Conclusões

A. Em IRS, as mais-valias tanto podem ser tributadas como rendimentos passivos (ganhos inesperados) ou como rendimentos ativos (resultantes de atividade económica recorrente).

B. Porque as mais-valias são apuradas quando ocorrem eventos de realização, quaisquer alterações à lei fiscal podem interferir com o valor dos bens detidos à data do início da sua vigência, gerando uma retroatividade própria, que resulta da projeção dos seus efeitos sobre factos tributários aquisitivos de bens, ocorridos antes da sua entrada em vigor. Uma projeção que subtrai aos proprietários desses bens, a possibilidade de, quanto a eles, realizar uma previsão ex ante, baseada nas novas regras.

C. Com a entrada em vigor do Código do IRS, o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares passou a tratar as mais-valias de forma mais abrangente e metódica, vindo por isso acompanhado de um regime transitório destinado a minimizar o seu impacto sobre o valor dos bens existentes à data de sua entrada em vigor.

D. A jurisprudência consolidou o entendimento de que os ganhos obtidos com a transmissão onerosa de prédio adquirido como rústico antes da entrada em vigor do Código do IRS, que ainda conservava essa natureza aquando do início da sua vigência (1 de janeiro de 1989), não são tributados em sede de IRS, ainda que posteriormente venha a adquirir a natureza de terreno para construção, sendo alienado como tal.

E. Com pontuais exceções, os tribunais superiores igualmente acolheram o entendimento de que os ganhos resultantes da venda de terrenos, na sequência de operações de loteamento, efetuadas pelo vendedor, devem ser considerados como rendimentos da categoria B.

F. As circunstâncias de o proprietário solicitar pareceres sobre a viabilidade construtiva antes da venda ou de o loteamento do imóvel ser promovido exclusivamente pelo comprador, não interferem com a consideração dos ganhos como inesperados ou fortuitos, sendo qualificados como rendimentos da categoria G, com a consequente aplicabilidade do seu regime transitório.

F. Sendo os ganhos obtidos com a venda dos imóveis qualificados como rendimentos da categoria B, o apuramento do rendimento tributável é feito com base na contabilidade, com dedução de todos os gastos e perdas incorridos para obter ou garantir rendimentos, sendo a mais-valia fiscal relativa à transmissão desses bens calculada nos termos do código do IRC. Em especial, isto significa que ao contrário das regras previstas para as mais valias da categoria G, que apenas considera como incremento patrimonial 50% do seu valor, as mais valias qualificadas como rendimentos da categoria B tendem a ser consideradas na totalidade do seu valor.

G. Da alteração introduzida pela Lei nº. 75-B/2020 de 31 de dezembro, resulta fortemente afetada a certeza jurídica quanto à tributação destes rendimentos, já que nos casos de afetação de bens imóveis do património particular a atividade comercial empresarial e profissional exercida em nome individual, deixou de apurar-se o incremento patrimonial prévio a essa afetação, possivelmente não sujeito a imposto ao abrigo do regime transitório da categoria G,

H. Em consequência, numa leitura prudente do regime atual, e sem prejuízo das considerações expendidas no texto sobre a sua constitucionalidade, deve contar-se que a afetação, feita após 1 de janeiro de 2021, de quaisquer imóveis rústicos ou urbanos adquiridos anteriormente a 1989 – que entre a sua aquisição e a entrada em vigor do código do IRS não tenham adquirido a natureza de terreno para construção – a atividade comercial empresarial e profissional exercida pelo seu proprietário, aparentemente resulta na inaplicabilidade total para tais contribuintes do regime transitório previsto na lei para os rendimentos da categoria G.

José Avilez Ogando

Junho de 2024

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[1] Como rendimentos da categoria G, que de resto apresenta carácter residual (artigo 10º do código do IRS). Cfr. Manuel Pires e Rita Calçada Pires, Direito Fiscal, 4ª ed., Almedina, 2010, pp. 372-373. Cfr. o acórdão do TCAN de 19-11-2009 (proc. 00123/98).

[2] Como rendimentos da categoria B (artigo 3º do código do IRS).

[3] Como refere João Taborda da Gama, “Terrenos para construção e regime transitório das mais-valias imobiliárias em IRS” Fiscalidade, Revista de Direito e Gestão Fiscal, nº. 30, 2007, pp. 86, 89, a mais valia levanta sempre o problema da tributação hoje de aumentos patrimoniais ocorridos no passado. O que segundo o autor gera uma tensão entre a igualdade horizontal, que pede a indiferença a esta retroatividade de modo a assegurar tratamento uniforme em todas as situações, e a justiça individual que implica levar em linha de conta a situação individual de cada um, mantendo no regime anterior os contribuintes que adquiriram os bens na sua pendencia. Parece-nos tratar-se antes de uma tensão dentro da própria igualdade, que ao mesmo tempo em que exige a discriminação positiva em função das diferentes circunstâncias associadas a diferentes casos individuais, por outro lado exige a uniformidade de tratamento imposta pela sua vertente de generalidade.

[4] Aprovado pelo Decreto-Lei nº. 442-A/88, de 30 de novembro e entrado em vigor em 1 de janeiro de 1989.

[5] Tributando de fora distinta diferentes modalidades de rendimentos e em função das suas diferenças.

[6] Previsto no artigo 5º do Decreto-Lei nº. 442-A/88, de 30 de novembro.

[7] Cujo código foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965.

[8] Cfr. artigo 5º nº. 1 do Decreto-Lei nº. 442-A/88, de 30 de Novembro.

[9] Cfr. acórdãos do STA de 29-03-2006 (proc. 01213/05), de 13-02-2008 (proc. 0763/07), de 04-02-2009 (proc. 0872/08), de 10/09/2014 (proc. 01381/13), de 20-05-2015 (proc. 0149/15), de 14-10-2020 (proc. 01152/10.7BELRS), de 09-06-2021 (proc. 0770/14.9BELRS), do TCAN de 15-12-2011 (proc. 00224/07.0BEPNF),de 14-04-2016 (proc. 00072/07.7BEPRT), e do TCAS de 26-06-2014 (proc. 06248/12), de 19-03-2015 (proc. 06720/13), entre muitos outros.

[10] Aos quais aquele regime transitório exclusivamente se aplica, como de resto resulta da epígrafe do artigo 5º do Decreto-Lei nº. 442-A/88, de 30 de novembro: “Regime transitório da categoria G”. Cfr. acórdãos do STA de 08-06-2022 (proc. 0340/09.3BESNT), do TCAS de 28-10-2009 (proc. 03224/09), entre muitos outros.

[11] Dada a inexistência quanto a elas de um regime transitório semelhante ao previsto no artigo 5º, nº. 1 do Decreto-Lei n.º 422-A/88, de 30 de novembro. De notar que estes rendimentos dispõem de igual modo de um regime transitório, previsto no artigo 4º Decreto-Lei n.º 422-A/88, de 30 de novembro, com soluções menos generosas às previstas para os rendimentos da categoria G.

[12] Na sequência aliás do entendimento sancionado por despacho de 18 de Agosto de 1992, do Subsecretário de Estado Adjunto da Secretária de Estado Adjunta e do Orçamento, constante da Circular 16, da DSIRS, datada de 14-09-1992: “A venda de terrenos precedida de uma operação de loteamento na medida em que pressupõe uma prática intencional de actos de valorização dos mesmos, retira aos ganhos assim obtidos a natureza fortuita caracterizadora dos ganhos de mais valias, configurando, um ou mais actos de natureza comercial, a enquadrar na categoria C, alin. a) n° 1 do art° 3º do CIRS.”. Cfr. acórdão do STA de 08-06-2022 (proc. 0340/09.3BESNT).

[13] Cfr. os acórdãos do STA, de 09-09-2015 (proc. 0810/14), de 24-02-2016 (proc. 0580/15), de 13-03-2019 (proc. 0424/09.8BEALM 068/18), de 08-06-2022 (proc. 0340/09.3BESNT), do TCAS, de 04-07-2006 (proc. 00973/06) e de 18-11-2008 (proc. 01681/07), de 28-10-2009 (proc. 03224/09), e do TCAN, de 19-11-2009 (proc. 00123/98), de 18-06-2020 (proc. 01866/07.9BEPRT), de 16-09-2021 (proc. 00092/07.1BEPRT).

[14] Como se pode ler nos acórdãos do TCAS de 04-07-2006 (proc. 00973/06) e de 18-11-2008 (proc. 01681/07), “Em suma, uma longa actividade não pode deixar de ser desenvolvida, durante quase dez anos, por todos esses comproprietários, ainda que algum ou alguns deles apenas pudesse ter dado a sua anuência, sem a prática de concretos actos materiais de loteamento, mas que em todo o caso sem a sua intervenção, designadamente intervindo em actos jurídicos a mesma não se poderia ter concretizado, com vista a alcançar esse objectivo de loteamento desses prédios, e daí retirar os consequentes proventos económicos, encontrando-se por isso, o acto de venda do lote em causa pela ora recorrente, que aí se insere, como longe de constituir mera fruição ou mero uso do direito de que era titular sobre um desses prédios, antes não podendo deixar de se integrar, também, nessa actividade comercial, ainda que ocasional, (…) sendo os rendimentos assim obtidos de tributar em IRS, na categoria C.”.

[15] Considerou assim o STA, mesmo que a “actividade dos comproprietários de dois prédios rústicos anteriormente à venda dos lotes de terreno resultantes daqueles imóveis se limitou à apresentação do pedido de licenciamento de loteamento (não se comprovando a realização de qualquer actividade de urbanização dos prédios, com a realização de infra-estruturas urbanísticas, que permita inferir a intenção dos comproprietários se associarem em ordem a prosseguirem uma actividade económica) (…)” (cfr. acórdão de 13-03-2019 (proc. 0424/09.8BEALM 068/18)).

[16] Como considerou categoricamente o TCAN, no seu acórdão de 19-11-2009 (proc. 00123/98), “os ganhos resultantes da venda de lotes de terreno na sequência do loteamento efectuado pelo vendedor, devem ser considerados como rendimentos da categoria C” (hoje da categoria B). No mesmo sentido considerou o STA em acórdão de 09-09-2015 (proc. 0810/14): “Os ganhos com a venda de terrenos, no seguimento das respectivas operações de loteamento, enquadram-se no conceito de rendimento proveniente de actividade comercial, ainda que o loteamento tenha resultado de uma actividade ocasional do loteador (impugnante).”.

[17] Cfr. acórdão do STA de 08-06-2022 (proc. 0340/09.3BESNT).

[18] É o caso dos acórdãos do STA de 12-01-2012 (proc. 0529/11), do TCAS de 11-11-2008 (proc. 02228/08), de 25-11-2009 (proc. 02815/08), de 26-06-2014 (proc. 06248/12), de 22-10-2015 (proc. 08741/15), de 25-03-2021 (proc. 493/09.0BELRA) e do TCAN de 15-12-2011 (proc. 00224/07.0BEPNF).

[19] Cfr. acórdãos STA de 02-07-2014 (proc. 01396/13), do TCAS de 19-03-2015 (proc. 06720/13) e do TCAN de 14-04-2016 (proc. 00072/07.7BEPRT).

[20] Cfr. acórdão do STA de 08-06-2022 (proc. 0340/09.3BESNT).

[21] O acórdão cita o atrás citado acórdão do STA 13-03-2019 (proc. 0424/09.8BEALM 068/18), onde se pode ler: “Se a actividade dos comproprietários (…) se limitou à apresentação do pedido de licenciamento de loteamento (…), os ganhos resultantes daquela venda dos lotes devem considerar-se como rendimentos obtidos com a prática de acto isolado de comércio e, por isso, a serem tributados na esfera jurídica dos comproprietários, como rendimentos empresariais, subsumíveis à categoria B (…).”; e ainda o acórdão de 08-09-2015 (proc. 810/14): “Os ganhos com a venda de terrenos, no seguimento das respectivas operações de loteamento, enquadram-se no conceito de rendimento proveniente de actividade comercial, ainda que o loteamento tenha resultado de uma actividade ocasional do loteador (impugnante).”.

[22] Artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 422-A/88, de 30 de novembro.

[23] Cfr. artigo 32º do código do IRS.

[24] Assim: MVF = VR – (VA – Amortizações) x coef.

Sendo: MVF – mais valia fiscal; VR – valor de realização; VA – valor de aquisição; Coef. – coeficiente de valorização monetária.

[25] Cfr. acórdão do STA de 08-06-2022 (proc. 0340/09.3BESNT).

[26] Orçamento de Estado para 2021.

[27] Artigo 10º do código do IRS (rendimentos da categoria B).

[28] Cfr. artigo 5º nº. 1 do Decreto-Lei nº. 442-A/88, de 30 de Novembro.