“Balbúrdia na quinta?” – Uma análise à decisão do TJUE de sujeição a IVA da indemnização atribuída pela expropriação por utilidade pública (Acórdão TJUE C 182/23, 11.07.2024)

I. Enquadramento do processo principal

J.S. gere uma exploração agrícola na Polónia, na qual efetua a atividade de criação de vacas leiteiras e de produção de leite desde 2001. Para este efeito, a J.S. está registada como sujeito passivo de IVA desde 2001, tendo adquirido em 2003 e em 2015 parcelas do terreno destinadas a aumentar esta exploração. [1]

Esta aquisição não foi nem sujeita a IVA, nem foi objeto de dedução. Em 2017 a Administração Pública polaca, adquiriu por via de expropriação por utilidade pública, a propriedade de uma parte das parcelas de terreno onde está situada a exploração de J.S. Esta expropriação destinou-se a utilizar estas parcelas de terreno para a realização de investimentos rodoviários, tendo simultaneamente a Administração Pública polaca procedido à indemnização da J.S. pela transferência de propriedade das parcelas do terreno.

A Autoridade Tributária polaca por sua vez, considerou que a transferência por via de expropriação, da propriedade de parcelas de terreno ao Tesouro Público, para realização de investimentos rodoviários devia ser considerada uma entrega de bens efetuada a título oneroso, tendo este agido na qualidade de um sujeito passivo de IVA, no exercício da sua atividade económica.

Esta interpretação foi contestada por J.S., uma vez que no âmbito desta transferência de propriedade não tinha sido diligenciado no sentido de vender as parcelas de terreno em causa e que a expropriação dessas mesmas parcelas tinha sido feita contra a sua vontade. Não estando, essa expropriação ligada à atividade agrícola de J.S. e, por conseguinte, este último não tinha agido como sujeito de passivo de IVA quando as parcelas de terreno em causa foram transferidas para o Estado polaco.

Esta questão foi então suscitada junto dos tribunais polacos que acabaram por submeter ao TJUE uma questão prejudicial que se prendia com saber se um agricultor (considerado sujeito passivo de IVA), ao abrigo das regras quando transfere o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno, mediante pagamento de uma indemnização devido à alteração da sua afetação para fins não agrícolas, seja considerado um sujeito passivo obrigado a declarar o IVA relativo a essa entrega, por essa parcela ter sido utilizada para uma atividade agrícola que estaria sujeita a IVA?

II. Decisão do TJUE

A Diretiva IVA prevê no artigo 2.º, n. º1, alínea a) da Diretiva IVA, os requisitos que uma entrega de bens tem de preencher para poder ser qualificada de operação sujeita. O artigo 9.º, n. º1 da Diretiva IVA, que define os conceitos de sujeito passivo e de atividade económica. [2]

O TJUE debruçou-se então, em saber se a aplicação conjunta dos artigos 2.º,n.º1, alínea b, e o artigo 14.º,n.º2, alínea a) da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que uma expropriação da propriedade de parcelas de terreno agrícola mediante pagamento de uma indemnização do sujeito passivo de IVA, deve estar sujeita a tributação, mesmo quando o sujeito passivo não exerça nenhuma atividade de comercialização imobiliária e não tenha encetado nenhuma diligência com vista a essa transferência.

A qualificação de uma operação como entrega de bens para efeitos da Diretiva IVA, exige três requisitos: Em primeiro lugar, tem de existir uma transferência de direito de propriedade; em segundo lugar, essa transferência tem de ser efetuada em virtude de ato das autoridades públicas, ou por força da lei; e por último terá de ser paga uma indemnização.

Em relação a este último requisito o TJUE determinou que para este estar preenchido apenas há que demonstra que a indemnização em causa está ligada à transmissão da propriedade e que o seu pagamento foi efetivo, o que parece estar verificado no referido caso.

No que toca ao requisito de que essa entrega seja feita a título “oneroso” [3], o simples recebimento pelo sujeito passivo de uma indemnização basta para que esteja preenchido o requisito da operação a título oneroso (como aliás constava já de decisões anteriores do TJUE).

A principal controvérsia no caso, tratava de perceber se o sujeito passivo age “nessa qualidade” [4], como figura do artigo 2.º, n. º1, alínea a, da Diretiva IVA quando transfere a propriedade das parcelas de terreno agrícola em causa. No contexto em causa, não podemos dizer que foi exercida uma atividade económica de comercialização imobiliária nem diligenciou no sentido de vender essas parcelas.

Em princípio, um sujeito passivo só atuará nessa qualidade se o fizer no âmbito da sua atividade económica, que será preenchido quando o sujeito passivo transfere a propriedade de bens imóveis afetos a essa atividade económica em sentido amplo.

Um sujeito passivo que efetue uma operação a título privado não irá a princípio atuar enquanto sujeito passivo, pelo que esta atuação não cairá sob a alçada da Diretiva IVA. Aquando da expropriação a propriedade da parcela dos terrenos eram parte dos ativos da empresa J.S., ou seja é interpretação do TJUE que à partida esta atuou como sujeito passivo por essas parcelas respeitarem a sua atividade dominante, ainda que não exerça uma atividade de comercialização imobiliária, nem tenha sido sua vontade exercê-la. [5]

O TJUE considerou assim que, a Diretiva IVA deve ser interpretada no sentido de que uma expropriação, da propriedade de terrenos agrícolas mediante pagamento de uma indemnização ao proprietário deve estar sujeita a IVA, quando este proprietário seja um agricultor sujeito passivo de IVA e que detenha essa qualidade mesmo que não tenha feito qualquer diligência para efetuar essa transferência.

III. Aplicação no Ordenamento Jurídico Português

III.1. Do processo de expropriação português

O direito de propriedade é um direito constitucionalmente protegido (artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa), não é um direito absoluto. O direito da propriedade pode ter limitações, como por exemplo através de expropriações que podem ser de natureza privada, ou pública.

A expropriação é o instituto jurídico que se traduz numa relação jurídica, através da qual a entidade expropriante, em conformidade com a lei e por razões de utilidade pública, procede à extinção do direito de propriedade então existente sobre bens imóveis (e outros direitos reais ou obrigacionais) e à sua transferência para um terceiro beneficiário, mediante o pagamento contemporâneo de justa indemnização, de acordo com o artigo 1.º do Código das Expropriações.

Os elementos da definição de expropriação são nomeadamente: i) a relação jurídica (que envolve diversos intervenientes, como a entidade expropriante, o beneficiário da expropriação, o expropriado e demais interessados); ii) o fundamento de utilidade pública; iii) a dimensão

translativa (transferência do direito de propriedade do bem imóvel, com a consequente mudança do respetivo proprietário) e; iv) a justa indemnização.

No âmbito do processo de expropriação, destaca-se para efeito deste texto as expropriações por utilidade pública, que se iniciam com o ato de declaração de utilidade pública. A indemnização do particular, constitui um pressuposto da legalidade do processo de expropriação e terá de ser proporcional à medida exata da compensação do particular, devendo corresponder ao valor do bem, de acordo com os critérios fixados no artigo 26º e seguintes do Código de Expropriações, compensando o particular pelos danos sofridos e potenciais lucros cessantes.

III.2. Do IVA da indemnização concedida por força da expropriação

A questão colocada no Acórdão em concreto prende-se com a questão de enquadrar o IVA em indemnização arbitradas em sede de expropriação.

Atendendo aos princípios característicos do Código do IVA temos de ter em conta que o facto tributário que dá origem à sujeição a IVA, pelo que estarão apenas abrangidas as operações que são remuneradas através de uma contrapartida em virtude o exercício de uma atividade económica e não por uma simples compensação. À partida poderíamos concluir que as puras indemnizações não iriam levar à liquidação de IVA. Esta tem sido nomeadamente a interpretação dos tribunais administrativos uma vez que a indemnização deverá sancionar a lesão de um interesse, que não vai ter qualquer caráter remuneratório pelo que não sendo uma atividade económica inerente à atividade de um individuo não estará subjacente uma transmissão de bens ou prestação de serviços.

No caso em apreço, a principal questão que se levanta seria se o enquadramento da questão nos levaria a concluir que o direito de indemnização cabia ou não ao proprietário/locador, como parte da atividade económica, o que suscitaria a questão da incidência objetiva, a qual será positiva, quanto mais não seja por força do caráter residual do conceito de prestação de serviços que está plasmada no artigo 4.º da Diretiva IVA, e à suposta questão do disposto no artigo 2.º, n.º1, alínea a), do Código do IVA.

O valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto, é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro. O intuito da concessão da indemnização em virtude da expropriação à J.S. seria a de compensar em virtude dos lucros cessantes que teriam por perder aquelas parcelas do seu terreno para efeitos da construção de uma estrada, mas também dos danos que seriam causados no imóvel por força da expropriação operada, nomeadamente às eventuais alterações que as autoridades polacas teriam de fazer no terreno.

III.3. O enquadramento da expropriação como atividade económica.

Recentemente, tem sido muito discutido pelos tribunais arbitrais, a possibilidade do enquadramento de indemnizações (como a relativamente a expropriações) enquanto atividade económica. [6]

De acordo com o artigo 562.º do CC, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. O conceito de indemnização está associado à responsabilidade civil, uma das fontes de obrigações presentes no Código Civil, e constitui um pagamento que visa repor a situação patrimonial em virtude de uma lesão ou dano.

O n.º 1 do artigo 564.º do CC estipula que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência de lesão (lucros cessantes). Distingue-se então entre: i) danos emergentes, ou seja, prejuízos causados nos bens ou direitos já existentes à data da lesão, e ii) os lucros cessantes, que se traduzem numa valorização que abrange os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito, mas a que ainda não tinha direito à data da lesão.

A tributação em sede IVA de uma determinada operação pressupõe a existência de uma contraprestação, associada a uma transmissão de bens ou a uma prestação de serviços, enquanto expressão da atividade económica de um agente económico, que atuei enquanto tal. O IVA é o imposto geral sobre o consumo pelo que incide sobre uma atividade económica, ou seja, sobre aquelas operações, tendo em conta o enquadramento a Diretiva IVA (Art. 2.º).

As indemnizações que apenas se destinem a sancionar a lesão de um interesse, sem caráter remuneratório, porque não remuneram qualquer operação, antes se destinam a ressarcir um dano, não são tributáveis em IVA, porque não se enquadram na alínea a) do n.º 6 do artigo 16.º do CIVA.

Todavia, se a indemnização se destinar a compensar os lucros cessantes, ou seja, a repor o nível de rendimento que, por força de um dano, o sujeito passivo deixou de obter, tem sido entendimento recente dos tribunais portugueses que já estaremos perante uma operação sujeita a IVA, devendo ser liquidado imposto na sua atribuição.

IV. Conclusão

A decisão do TJUE põe em causa a interpretação que a Diretiva IVA tem vindo a fazer das operações de transferência, nomeadamente de expropriação, da propriedade de parcelas de terreno agrícola, mediante pagamento de uma indemnização pelo facto de esse mesmo terreno estaria sujeito a IVA, pelo próprio sujeito passivo atuando como tal, mesmo que não exerça nenhuma atividade de comercialização imobiliária e não tenha feito qualquer atividade de comercialização, nem tenha tido qualquer iniciativa para essa transferência de propriedade.

Tendo em conta o sentido das decisões mais recentes dos tribunais arbitrais em Portugal e o caso em concreto, parece que deveria estar sujeita a tributação da indemnização obtida por via de uma expropriação por utilidade pública, mesmo quando o sujeito passivo não exerça nenhuma atividade de comercialização imobiliária e não tenha encetado nenhuma diligência com vista a essa transferência. Face ao exposto, acima de tudo teremos de ter em conta sim, a natureza da indemnização e o seu âmbito relativamente aos pressupostos económicos das atividades sujeitas à Diretiva IVA. Esta decisão do TJUE estabelece então mais uma relevante clarificação para a sujeição a IVA de indemnizações.

Duarte Canau

Janeiro 2025

                                                                                                    ________________

[1] Acórdão do TJUE, processo C-182/23, 11.07.2024

[2] Acórdão do TJUE, processo C-421/17 (Polfarmex) 13.06.2018

[3] Acórdão do TJUE, processo C-665/16 (Gmina Wroclaw) 13.06.2019

[4] Acórdão do TJUE, processo C-180/10 (Slaby) 15.09. 2011

[5] Consideração inicialmente delineada na jurisprudência do TJUE. Cfr. Acórdão do TJUE (Armbrecht) processo C-291/92. 04.10.1995; Acórdão do TJUE (Backsi) processo C-415/98

[6] Cfr. Decisão Arbitral, processo n.º 798/2022-T, de 24 de outubro de 2023